Sobre os músicos, intérpretes e o streaming

Acho que já li uma meia dúzia de artigos com o título “precisamos falar de streaming”, de diversos autores, com títulos bem assemelhados, como variações sobre o tema. Não precisamos de outro, mas muitos músicos precisam conhecer os fatos e as distorções que envolvem os pagamentos decorrentes da exploração de seus direitos patrimoniais e conexos.   

A música nunca foi um negócio como outro qualquer. Trata-se de obra, de valor formativo para a sociedade, mas claro, como tudo o que está sob o sol, pode tornar-se mercadoria. O desenvolvimento da música como prática social sempre foi mediado por tecnologia, aquela disponível nos diversos tempos históricos. Hoje, o processo de convergência tecnológica e de mídias deslocou o centro de difusão da música para a internet e são as plataformas de streaming que constituem o centro difusor e de comercialização mundial de música. As contradições de ordem financeira a que somos submetidos para comercializar nossa produção independente foram a motivação maior que nos fez decidir por um modelo alternativo que ora se consubstancia no selo Zênitha Música.  

A legislação consagrou na modalidade de comunicação ao público – que inclui a radiodifusão, a execução pública, entre outras formas, o que permitiu a arrecadação e distribuição pelo ECAD de direitos conexos para os titulares, como músicos, intérpretes e produtores fonográficos. Acontece que no streaming, uma lógica perversa se impôs à revelia da legislação brasileira para Direitos Autorais: essa se consubstancia na interpretação de que não há execução pública no streaming (!). 

Se assim é, músicos e intérpretes não recebem mais direitos conexos. Músicos e intérpretes somos nós e todos aqueles que integram nosso círculo de relações profissionais e afetivas. Esses profissionais são a nossa família estendida, e não desejamos que sofram esse processo de precarização profissional. Se todos começarem a repetir a mesma narrativa, a de que não há execução pública no streaming, é ela que será instituída, mesmo em contradição com a lei vigente. É o que está ocorrendo agora.

E aqui um parêntese: o streaming é um sistema que contém um complexo de operações de distribuição, reprodução e execução pública. É por isso que você, músico e intérprete, faz jus ao direito conexo. E essa questão já foi pacificada pelo STJ e pelo STF! Os defensores dessa interpretação alternativa afirmam que esse dispositivo legal não é Lei, mas “apenas” instruções normativas. Há instruções normativas vigentes na legislação fiscal que, se você descumprir, será preso. Então, por que as instruções normativas que reconhecem a execução pública no streaming que estão vigentes não devem ser cumpridas? 

Mas o problema não é só esse. Apesar do streaming ser um ótimo e moderno sistema, a repartição do faturamento é profundamente injusta não apenas aqui no Brasil e vem despertando a reação de artistas de todo o mundo. Os valores arrecadados no streaming são distribuídos da seguinte forma: 30% da plataforma, 58% para as companhias discográficas e os 12% restantes divididos em 9% para as editoras e os 3% restantes para o ECAD que não repassa os direitos conexos que deveriam ser cobrados e distribuídos, porque essa cobrança foi interditada pelas discográficas. (Há um acordo operacional imposto ao ECAD pelos editores da UBEM, que antes ficavam com os 12% integrais e resolveram doar essa esmolinha ao ECAD por pressão das sociedades ASCAP, BMI e PRS que não estavam recebendo execução pública no streaming). Voltando à divisão do bolo, por quê as gravadoras ficam com 58%? Porque foram as discográficas que negociaram os repertórios através dos chamados Global Deals, contratos de vigência mundial dos quais você não participou. Parafraseando o compositor Dudu Falcão, já que você não participou, você foi participado. Então não há mais nada aqui para você, músico e intérprete. E agora, você, que está sozinho nessa: qual o seu poder de negociação?

Na época das rádios de grande audiência, havia o jabá, lembra? Paga para tocar e para fazer sucesso: o jabaculê! Hoje temos a compra de espaço em playlists, a compra de likes e de audições em massa. A lógica se reproduz ad nauseum et ad eternum

A quem interessa instituir esse desregramento todo na economia da música? O que interessa é a quem cabe lutar por mudanças? O dramaturgo alemão Bertolt Brecht nos sugere uma pista no filme Kuhle Wampe ou A Quem Pertence o Mundo, de 1932. Nas cenas finais, há uma discussão entre passageiros em um trem, e um rapaz diz: “- este cavalheiro não vai mudar o mundo, ele está satisfeito!” O cavalheiro então retruca, “- e quem quer mudar o mundo?” Uma jovem operária que a tudo assistiu responde: “- os que não estão satisfeitos”.