EP Liverpool, Rio – Celia Vaz/Ricardo Silveira

“CELIA VAZ / RICARDO SILVEIRA”

(Liverpool, Rio)

Sempre fui encantado pelas mulheres na música, particularmente suas aproximações com a composição, o arranjo e a execução de seus instrumentos. Nomes como Carla Bley, Toshiko Akiyoshi, Tania Maria, Joyce Moreno, Lilian Carmona, Rosinha de Valença e Eliane Elias, para citar algumas, costumam reverberar de maneira singular no meu gosto pessoal, encerrando com sensibilidade peculiar diferenciais característicos do universo musical feminino. “Elas também tocam jazz”, livro de Luiz Orlando Carneiro publicado em 1989, ratificou tal percepção e me aproximou ainda mais de outra artista que eu já admirava à época: Celia Vaz. Celinha, em seu texto preciso na apresentação do livro, diz que “ser músico, adotar os sons como linguagem, é um ofício que requer a dedicação de uma vida”.

Estas palavras dizem um pouco da obstinação de alguém que se aproximou, muito menina, do guitarrista Kenny Burrell em uma viagem aos EUA, encontro que trouxe lições de vida preciosas para ela. Da jovem que foi para a Berklee College of Music (em Boston, Massachusetts) estudar arranjo e composição com a cara e a coragem. Da mulher que encarou e regeu uma orquestra de músicos americanos para o disco “HOTMOSPHERE” do grande Dom Um Romão nos anos 70 (e ainda teve uma composição sua no repertório do disco, “Cisco Two”). Da dobradinha marcante com Rosinha de Valença em shows e gravações pelo Brasil. Do talento que lançou, em 1980, na flor de seus trinta e poucos anos, um disco fundamental para a música instrumental brasileira: “MUTAÇÃO”, na lendária série MPBC da Polygram, com participação do guitarrista Pat Metheny, paixão que temos em comum, em um solo absolutamente antológico na faixa título.

Dessa forma, para mim ficou claro que eu teria que conhecê-la de algum jeito. E assim, na década de 90, acabei por tornar-me seu aluno de harmonia e violão. Professora das melhores, e não sou apenas eu quem afirmo, a convivência com Celinha me trouxe, além de conhecimento e apuro técnico como músico, uma experiência de vida que guardo até hoje, regada por uma amizade que nos é cara desde então. Foi assim que vi germinar alguns de seus trabalhos inesquecíveis, solo ou em parceria, como o álbum gravado ao lado de sua amiga Wanda Sá (“Brasileiras”), os tantos que realizou como diretora musical do Quarteto em Cy (que carinhosamente chama de “quartetas”), o experimental e belo “EBB AND FLOW” para a Farout Recordings ou ainda o lindo trabalho com o grupo vocal “Nós Quatro”, onde ela pôs em prática, no palco e em estúdio, uma de suas paixões: os arranjos vocais.

Absorvi também, entre tantos ensinamentos, seu fascínio pela música pop, evidenciada sobretudo no carinho por discos de Burt Bacharach, James Taylor e, claro, Beatles. Por isso, não surpreende que ela traga um pouco de sua memória afetiva por meio de canções clássicas de Lennon & McCartney neste novo lançamento que me chega às mãos. Mas, com sua cabeça de arranjadora inquieta e sua alma musical forjada nos anos da Bossa Nova (ela teve sua primeira composição, “Lembrança”, gravada nos anos 60 por ninguém menos que Doris Monteiro), os Beatles de Celinha têm o tom de azul de nosso mar tropical, como o que estampa a linda capa concebida por Helena Zollinger para este trabalho. Sempre cercada de amigos e excelentes músicos, dividiu os créditos deste álbum com o exímio guitarrista Ricardo Silveira, companheiro de longa data, a quem ela já havia dedicado uma canção chamada, singelamente, “Meu amigo Ricardo”. Ele que, não por acaso, é o violão de 12 cordas onipresente no tema “Mutação”, aquele mesmo do disco de 1980.

Assim, o álbum “Celia Vaz / Ricardo Silveira” é uma pequena joia de cinco faixas que reprocessa canções conhecidas como “We Can Work It Out”, “And I Love Her”, “Can´t Buy Me Love”, “Ticket To Ride” e “Day Tripper”, todas lançadas pelos quatro garotos de Liverpool entre os anos de 1964 e 1965, período que coincide exatamente com o despertar de uma Celinha adolescente para a estrada que percorreria a partir dali. É fechar os olhos e perceber o carinho com que cada faixa é tratada. Os arranjos, de Celia, soam como beijos agradecidos à estas canções que são a sua própria história de vida. Todas, claro, envoltas, cada uma à sua maneira, em uma atmosfera bossanovista que passa também pela sua voz delicada e sempre muito bem colocada. A guitarra protagonista de Ricardo é de um bom gosto comovente em cada canção, com solos totalmente integrados à proposta leve do álbum.

Não poderia terminar sem mencionar as participações preciosas de Jorge Helder (baixo), Jurim Moreira (bateria), Armando Marçal (percussão) e Fernando Leporace (vocal em “Day Tripper”), além do som lindo do disco, sob a responsabilidade de Marcio Gama e Rodrigo Campello (gravação) e Carlos Freitas (masterização).
Acompanhar a trajetória de Celinha tem sido um privilégio para mim ao longo destes anos. Testemunhar que a música é, efetivamente, “um ofício que requer a dedicação de uma vida”, como ela mesma, um dia, sinceramente externou, se traduz como aprendizado permanente na minha caminhada. Este seu compromisso com a arte que acredita, seja no estudo abnegado do seu instrumento, nos arranjos e partituras que escreve para orquestras e grupos vocais, na direção musical de artistas das mais diferentes vertentes no Brasil e no exterior, ou, até mesmo, quando aprendeu, apaixonadamente, os primeiros acordes de canções dos Beatles na adolescência, é revelador. E, assim, eu sigo atento a tudo que Celinha faz… and I love her.

Maurício Gouvêa – junho de 2023