“FERNANDO LEPORACE”
Fernando Leporace é parte de meu imaginário musical há tempos. E não por acaso. Adepto que sou, desde muito jovem, das fichas técnicas dos discos, não era raro encontrá-lo participando de álbuns e gravações que marcaram a minha vida. MPB-4, Gal Costa, Luiz Melodia, Fatima Guedes, Milton Nascimento, Novelli, Toninho Horta, Danilo Caymmi, Ivan Lins, Caetano Veloso, Ney Matogrosso… Baixista de primeira linha, daqueles que assinam linhas melódicas únicas com seu instrumento, além de arranjador raro, era fácil destacá-lo nos sons que me conquistavam.
E ainda havia o compositor, letra e música, igualmente diferenciado. Gravado por Antônio Adolfo e a Brazuca, Joanna, Marília Medalha, Zizi Possi, Gracinha Leporace, Leny Andrade… foram muitos os que interpretaram suas canções. De tanto ouvir Fernando por aí cheguei em sua obra seminal: os grupos Manifesto e Vox Populi, os Festivais da Canção… procurem saber. Assim, era natural a minha expectativa de, na manhã de minha juventude nos anos 80, ver um álbum de Fernando chegar ao mercado. Houve, é verdade, um compacto simples em 1980, pouco divulgado, com as faixas “Sonhador” (participante do Festival MPB 80, da Rede Globo) e “Esse Amor”, parcerias com Nelson Wellington. Mas a espera pelo sonhado LP realmente terminaria em dupla com outro compositor hábil, Maurício Gueiros. Disco independente, como os incansáveis costumavam lançar naqueles tempos em que as grandes gravadoras davam as cartas. Eu me lembro de estar em 1987 no Parque da Catacumba (o saudoso projeto “Rioarte Instrumental”) para este lançamento e ver Fernando de perto, aquele mesmo que compôs o clássico “Camaleão”, tema instrumental tantas vezes regravado – Edu Lobo, Eugénia Melo e Castro, Joyce/Tutty Moreno – e que, já naquela época, estava marcado na minha memória. Meus heróis sempre sugiram assim, munidos de discos, canções e instrumentos musicais.
E depois de trinta e cinco anos daquele show, uma espera longa demais, Fernando nos afaga com um disco solo. Finalmente. “FERNANDO LEPORACE”, o álbum, é um misto de temas inéditos com outras tantas referências ao seu cancioneiro já eternizado, um convite ao espectro amplo e atemporal de sua criação. Artista sensível e querido por muitos, cercou-se de gente próxima e talentosa – Celia Vaz, Marcio Lott, Alfredo Cardim, Marianna Leporace, Alberto Chimelli, Fernando Coelho, José Carlos Bigorna, Cacala Carvalho, Sidinho Moreira, Ricardo Costa, Robertinho Silva, Rubinho, Pablo Coelho, Jovi Joviniano, entre outros – para gravar um álbum emocionado e que, a cada audição, ganha novos contornos e coloridos. Fica para mim, especialmente, uma percepção de celebração. Cada artista aqui presente, mais do que simplesmente pôr em prática a sua arte, acaba por reverenciar esta obra maiúscula. Se Marianna Leporace me comove em “Wanting More”, tema eternizado “simplesmente” por Sarah Vaughan e Johnny Mathis (na versão em inglês, parceria com Tracy Mann), além de Nana Caymmi e Alaíde Costa (na versão em português, “O Que Se Sabe De Cor”, letra do próprio Fernando), o que dizer de Joyce Moreno, companheira de tantos shows e gravações, cantar com o anfitrião a parceria “Seus Olhos” (música dele, letra dela)? Esta faixa me remeteu diretamente ao trio inesquecível que fizeram – Ela, Fernando e Tutty Moreno – em discos fundamentais de Joyce como “Feminina”, “Água e Luz” e “Tardes Cariocas”. Um trio que “tocava por telepatia”, como ela mesmo me disse certa vez.
E os meses em que viveu no México, no final dos anos 60, talvez expliquem duas canções com letras em língua espanhola: a deliciosa “En la Calle”, de levada irresistível e composta com seu filho Antônio Leporace (também músico na faixa), e “Sin Pena”, esta última apenas de Fernando, bolerão danado em que Celia Vaz encanta na interpretação. Ela, mestra que é de todos nós, ainda emoldura a canção com vocalizes sensíveis e cheios de sua musicalidade particular. Ao melhor estilo “crooner”, Marcio Lott dá sua versão aveludada a “Embriagador” (parceria de Fernando e Nelson Wellington), já gravada por outra dama da noite, Leny Andrade. Mais um bolero que nos chega, desta vez, amalgamado à “salerosa” “Acontece com quem ama” (Fernando Leporace e Abel Silva), com Celinha Vaz, novamente, derramando a luz própria de seu canto.
Mas, e o samba? Sim, temos. De um bem rasgado com Délcio Carvalho, (“Deixa o Amor se Dar”, parceria de Fernando com o próprio Délcio) a um samba-canção com Alberto Chimelli (“Foi Fantasia”), passando pela joia sincopada de Sebastião Leporace “Nem Telefonei”, em que os irmãos Marianna (pura bossa!) e Fernando reverenciam a obra de seu Pai, tão importante na formação musical de ambos. O disco fecha, claro, com um tema instrumental. “Cacarejo” é Fernando Leporace na veia, sua vocação melódica escancarada, suingada e provocante, os anos 70 pulsando com toda a força e a brilhante participação da guitarra de Felipe Poli. Lembro bem de ter ouvido este tema ao vivo com o saudoso grupo vocal Nós Quatro em algum lugar do passado.
Com tantas nuances em suas dez faixas, este álbum abre o vasto leque de Fernando Leporace e tenta dirimir seu hiato fonográfico para conosco, admiradores das várias vertentes de sua arte. Se o músico/compositor/arranjador é uma unanimidade, eu ainda somaria a tal senso comum o seu lado de intérprete sensível. Virtude, aliás, de todo grande compositor para com as suas “crias”. A voz pequena e sempre bem colocada está, é verdade, em vários momentos do disco, mas me encantou, particularmente, em “Tarde dos Sabiás” (Fernando Leporace e Abel Silva). Uma (quase) valsa, gravação espontânea e expansiva, que captura apenas a essência de Fernando e seu piano. “Amigos pediam mais”, diz a letra. E essa é a real sensação que fica ao ouvirmos este lançamento essencial: a de que nós queremos mais e mais a música de Fernando Leporace. Ontem, hoje e sempre.
Maurício Gouvêa – agosto de 2022