Album digital Europa – Felipe Radicetti

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O CD Europa – música acusmática* é um álbum inteiramente eletrônico, sem letras, constituído de sete obras musicais, criadas e produzidas com precisos sete minutos de duração cada. As músicas refletem a experiência do compositor quando residiu em Bruxelas de 2009 a 2011. As ideias nasceram do desejo de traduzir as fortes experiências e transformações sofridas na interação direta com a vida social que testemunhei na Bélgica, França, Holanda, Alemanha e no Grão-Ducado de Luxemburgo. Os fatos, a progressiva aprendizagem da língua nova (francês), a rotina vivida entre artistas do teatro e da música contemporânea, a convivência e o confronto próximos ao homem comum, com políticos, visitando palácios, o Parlamento Belga e os bairros degradados de Bruxelas, tudo concorreu para a motivação do projeto, assim como para determinar a linguagem e a estética da obra inteira.

* música acusmática: “é uma forma de música eletroacústica, que é composta especificamente para a apresentação através de alto-falantes. falar de música acusmática é assumir que o auditor não vê a origem do som que ouve. o termo acusmática remonta a Pitágoras; acredita-se que o filósofo tenha ensinado seus alunos atrás de uma tela, de modo a não deixar que a sua presença pudesse distraí-los a partir do conteúdo de suas palestras. em 1955, Jérôme Peignot e Pierre Schaeffer foram os primeiros a usar o termo para definir a experiência de audição de música concreta” (wikipedia).

LETRAS

Funk do Beijinho (Felipe Radicetti)

É claro aqui o traço estreito que contorna essa periferia em que pareço estar dentro e me percebo, subitamente, fora. Um espaço em que não estou, eu sou entorno. Logo me torno um corpo sem espaço no tempo em que vivo aqui.

 

Meu corpo na europa tem, todavia, tempo:
tempo de trocar de pele e de contorno
de zumbido noturno, de zombaria
como metamorfose que se opera de fora
logo, a metamorfose da vida da periferia.

Ah, esse tom na minha voz ao te saudar!
Há sempre algo que não me autoriza.

 

A claridade aqui é sempre pouca.
Com essa luz tão débil, não consigo distinguir.
Mas logo me distinguo aos vossos olhos.
Há, nesse caso, sempre algo que não me autoriza.

Dentro de niqabs*, mulheres árabes resistem, por aqui.
Homens brancos brincam com seus nomes
e costuram troças de suas vestes
de seus véus e de sua invisibilidade de mulher.
Logo, algo que não as autoriza nunca.

Aqui há essa estreita periferia
como uma gestação inversa, pondo pra fora a semente
que ora residente, adere e nos intoxica lentamente.
Há os que se encolhem, outros que dão de ombros.

 

*niqabs: vestimentas pretas da cabeça aos pés, com apenas os olhos expostos. difere-se da burca, na qual até os olhos estão cobertos. em um folheto distribuído pela Subprefeitura de Etterbeek, administrada pelo Partido Reformador Belga, o anúncio da proibição dos nikabs objetava a impossibilidade de identificação e de garantia de segurança, com o texto “Niqab: ni respect, ni securité”. um perigoso jogo de palavras que se utilizou da primeira sílaba do nome para construir uma negação e um juízo.

A hora crepuscular de Bruxelas (Felipe Radicetti)

Em Bruxelas reencontrei, nas horas crepusculares, Rilke e a minha infância. Nessa hora precisa, era Rilke que insurgia em mim, no lugar de minha mãe. Essa hora era destacada do dia, como uma ameaça que surge à frente. Da mesma forma que no espaço dos sonhos, toda ação era suspensa para a passagem desse tempo, como cérbero que impusesse um medo imobilizador, como quando nada seria capaz de nos impelir.

A hora crepuscular da cidade era outra, mas se afinava a mim, sincrônica. A cidade readquiria seus tons sem luz. Também fraquejavam os tons nos rostos dos habitantes que faziam, como eu, a longa volta para casa. Mas eu não chegava, nunca. Como em meus sonhos, esse direito também a mim estava interditado. envolta em maus sonhos, a quadriga de bruxelas se detém, seguidamente, nessas horas crepusculares.

Pelléas nos subterrâneos (Felipe Radicetti)

é da mesma forma familiar
Estar em teu estranho país é estar de novo
em um lugar reconhecido e íntimo
Não entender o que dizem, o que os corpos exalam,
o que exibem os seus modos
não é novo, não é distante e nem é infértil,
não é exílio pela palavra.
Mas o que cala em mim e isso sim,
é tão distante e familiar
é me rever ainda menino nessa sala, os semblantes altos,
em meio a adultos e aos seus saberes ocultos.
É terrível e penoso precisar tanto dessa ternura que vossa polidez
encerra tão instável
sem corpo ou substância,
tênue e impermanecida.

Como sustentar o sorriso quando a dor nos subjuga,
o sorriso que se desfaz no mesmo instante
como o noviço em gozo secreto, que ora secreta com o sexo na mão,
como a aceitação que os deficientes têm de contar,
todos os dias, diante dos dias a chegar,
os dias ordenados e os dias ordinários
e mesmo estes, os dias, são inteiros nessa longa espera.
Os meninos nunca dão a isso a atenção necessária.

Molok contra as Pussy Riots (Felipe Radicetti)

“(…) eu não tenho medo de vocês. eu não tenho medo da mentira, eu não tenho medo da ficção, eu não tenho medo dessa mistificação mal engendrada, eu não tenho medo do “suposto” veredicto do tribunal. Isto porque só poderão privar-me desta “suposta” liberdade. Esta é a única que existe no território da federação russa. Minha liberdade interior, ninguém pode tirar.”*

Maria Alekhina, 8 de agosto de 2012.

Aprisionada na colônia penal Ik-28, 81, Lenin Avenue, Berezniki, região de Per, Rússia.

Orbitando os extremos da europa, nos eitos de ar rarefeito, Molok, esse demônio residente nos extremados cidadãos de poucas mesuras, lança-se como um choque séptico, movendo-se sob a pele, como nas pestes antigas. de um lado, já se sabe, e se sabe desde quando assim está, possuído, consagrado e corporalmente absolvido. De outro, tu, hospedeiro miserável, só reages contra aquilo que já não é mais que um tecido roto, tal qual tudo o que teces com desprezo em cenas de bar. Te crês assim, deus em farrapos como sinal de antigüidade a que todos devem distinção!

De onde essa gente espera obter a paz que seus corpos lhes negaram?

Esses tempos sem espírito representam bem melhor o teu ideal de amar: volátil, disforme e de corpo ausente, embora tudo esteja, naturalmente, muito bem encenado pela cultura.

O arco que teu riso descreve, traça o ar gélido, redesenhando apenas o curso do sumidouro para onde és atraído desde tempos imemoriais: inútil desvelo. Os mesmos devastados de outrora, imersos na intolerância por milênios de trevas.

A floração no tempo dilatado da Toscana (Felipe Radicetti)

Reconheço que sob esse sol, essa luz,
ainda que tão inclinada, somos todos semelhantes.
Tal como em escolhas perdidas, por atalhos que nos levam distantes.
E há anos tem sido assim, em experiências que indiretamente forjam o próximo Volga a ser transposto.

Tempo e gestos circulares, circulares como o trajeto da bala que se destina ao peito e que pode traçar um longo arco, capaz de trespassar décadas, para novamente em seu ímpeto, haver-se uma vez mais em nossos corações disparados.

Felizes tempos que a tudo antecedem.

Der fall (Felipe Radicetti)

“I would like only to mention the fact that there’s nobody around; there’s not a single soul either here in Orgonon or down in New York who would fully and really from the bottom of their existence understand what I’m doing and be with me in what I’m doing. They are all very good people; they are decent, honest, hardworking, I trust them, they are very good friends, all of them, or most of them; but this does not alter the fact that they all, without any exception, are against, I say, are against what i am doing. every single one of them”.

Wilhelm Reich, april 3rd, 1952 at Orgonon, Rangelei – Maine.

Pela solidão que te impele a agir, a solidão com que os contraídos possam querer te punir, eu te saúdo. Diante de ti eu permaneço silente, sem voz, sem nada romper com palavras. mas minha imobilidade não é inércia ou susto de súbita queda. Ouvinte teu nesse intervalo de tempo, desde anos cativo de teu incessante brado libertário, ainda que ninguém escute, eu de ti quero tudo, eu quero a música.

O Evangelho segundo Pier Paolo Pasolini (Felipe Radicetti)

O orgulho está de volta à Europa*
já é tempo de trair os indivíduos
e de subtrair aqueles que estão abaixo.

Já é o velho tempo de mentir novamente.
Il Vangelo di Matteo é feito um corte no ventre.
Carne trêmula como bandeira feita de sangue e desejo.

* “La fierté est revenue”, slogan da campanha presidencial da candidata a presidente Marine le Pen, Front National, alcançando 17.90% dos votos (6.421.426) França, 2012.

Ficha Técnica

Ficha Técnica CD Europa (álbum eletrônico, sem letras)

 

Todas as músicas de Felipe Radicetti
Felipe Radicetti: teclado e computador
Taryn Szpielman: sons de beijos em Funk do Beijinho