Sobre as coisas e sobre as coisas acontecerem ou não…
As decisões de mercado são do próprio mercado. Reagir a elas é direito legítimo, é recurso costumeiro, mas, via de regra, desilude. Porque quem reage costuma incorrer no erro de querer parar o tempo, restituir o destituído e insistir no que já ficou obsoleto.
A ilusão é costumeira, em todas as áreas. Os mais velhos se lembrarão de que, nos anos 1970, o hardware necessário para a fabricação de roupas caiu de preço tanto quanto o hardware de produção musical nas últimas décadas. A consequência é que uma multidão se tornou dono de confecção do dia pra noite. Todo mundo conhecia pelo menos uns 4 ou cinco desses empreendedores da época. Parecia possível enfrentar as grandes marcas, tipo Levis (!!!!), e conseguir algum espaço no mercado. Foi possível? Até foi, mas só pra quem tinha mesmo entendimento do mercado. O resto, mais de 90%, faliu.
Hoje, no mundo da canção, o nó parece ser o advento do streaming e sua baixíssima remuneração. Será? Já houve outros nós, e jamais foram desfeitos. A partir dos anos 1930, até o início dos anos 1960, os artistas em geral, e os da música também, viviam de contratos com as rádios, recebendo remuneração fixa e garantida. Isso sem contar os eventuais shows e a venda dos discos. Dos anos 1950 até o início dos anos 1970, as Tvs pagavam cachês pra toda e qualquer aparição, e era assim que os então iniciantes, como Caetano Veloso, pagavam suas contas. Nada disso existe mais, ao contrário, hoje a regra é pagar pra tocar no rádio e/ou aparecer na TV. Houve reações, é claro, mas o mercado manteve sua predominância.
Faz 40 anos que tive uma música gravada pela primeira vez. De lá pra cá, algumas centenas. Direito autoral? Sim, fui desse tempo, do tempo em que se vendiam discos e não existia mp3. Mas o mp3 veio e, através dos recursos maravilhosos da internet, tudo mudou de novo.
O mercado tem o tempo a seu favor. Um artista iniciante, de 20 ou 30 anos, não sabe que houve contratos nas rádios, cachês nas TVS e venda de discos. Na casa dele não tem nem CD/DVD player. Tudo se resume a um celular, um earphone e um streaming interminável. Ele quer estar no streaming. Ele não vê TV, cujo aparelho serve apenas pra canais tipo Netflix. Ele não ouve rádio. E ele entende e acha normal que o streaming seja apenas uma vitrine. Ele não espera dinheiro do streaming, ele já sabe como é o jogo. Os artistas antigos? Alguns tentam o confronto, mas logo descobrem que não estar no streaming e não ser conhecido pelas novas gerações é condenar a própria obra ao esquecimento. Lembro a vocês que no início disso tudo, a EMI Publishing quis exigir um ganho maior pro streaming ter acesso ao catálogo dos Beatles. O streaming disse não, a EMI manteve sua posição. Passado algum tempo, foi contratada uma pesquisa e se constatou que os mais jovens daquele momento tinham menos conhecimento sobre os Beatles do que os mais jovens de algum tempo atrás. A EMI então recuou e resolveu aceitar as bases oferecidas pelo streaming. A resposta foi: agora estamos pagando um pouco menos do que quando começamos… A EMI aceitou assim mesmo. Mais recentemente, o Neil Young retirou seu acervo do ar, protestando contra um podcast negacionista que dividia o streaming com a música. As plataformas não reclamaram, não sentiram falta, os podcasts de direita se proliferaram, Resultado: o Neil Young recuou, reativou seu acervo e reconheceu a “derrota”.
Luto há anos pela organização do mercado independente. Já escrevi muito sobre isso. Já incentivei, já cooperei, já ajudei. Tive uma gravadora que durou pouco e ainda tenho um selo cuja atividade diminuiu muito desde a pandemia, mas que já lançou muita gente. Já dei palestras em universidades, em centros culturais. Falei disso em São Paulo, em Campinas, no Rio de Janeiro, em Cabo Frio, em João Pessoa, em Lisboa, em Londres, em Santiago de Compostela. Já debati sobre isso e colaborei com coletivos de Montevidéu, Buenos Aires, Belo Horizonte, Salvador, Natal, Sul de Minas, e mais não sei lá onde.,,
Ao longo desse tempo, aprendi algumas coisas. Sem um sentido forte de união, por exemplo, a luta nem vale a pena de ser cogitada. Mas vejam, não falo de uma união costumeira, habitual. Não falo de uma união onde os unidos estão ali porque têm objetivos próprios a serem atendidos e esperam que a união os favoreça nisso. Não falo de uma união onde a mentalidade seja o toma-lá-dá-cá apressado e imediatista que a ansiedade por resultados costuma gerar nos artistas. Falo de uma união política, consciente. Uma união que não surge só de uma dificuldade momentânea. Uma união que deriva da compreensão do mal que as políticas de mercado fazem aos artistas, mas não só aos artistas, do mal que fazem à Arte em si e à sociedade como um todo. Uma união entre aqueles que compreendem que arte e cultura são os alinhaves entre as pessoas, entre as gerações, entre os sotaques, entre as aspirações e as esperanças de todo mundo.
Nunca tive nenhuma dificuldade gerada pelo mercado especificamente contra meu trabalho. Pelo contrário. Sempre fui convidado, elogiado, bem recebido. Em alguns momentos da vida, criando a filharada, sobretudo, não hesitei em lidar com o mercado, e assim fui, por uma parte da estrada, artista exclusivo primeiro da EMI, depois da BMG e, por fim, da Universal. Passada a razão específica, voltei voluntariamente à minha condição de artista independente. Não digo isso pra me enaltecer, mas sim para mostrar que realmente acredito na justificativa política e histórica de lutar pela arte independente, por se tratar de um dos aspectos da luta pela soberania da sociedade em que vivo.
Uma união assim, não se quebra fácil e viabiliza o diálogo entre os cidadãos e os criadores. Há zil formatos possíveis, o melhor será sempre o que agradar à maioria. Contem comigo, se quiserem e/ou acharem importante. De minha parte, sigo fazendo o que posso, inclusive escrevendo textos assim. Um abraço a todos.
Alexandre Lemos